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A infância extraviada de cada um

Uma calcinante sensação de angústia varou o meu peito lá pelo meio de junho. Ficou remoendo por períodos mais ou menos longos e foi embora com certo vagar, tal como aportou naquela manhã inundada de brisa invernal. Não se trata de saudade ou, quem sabe, nostalgia. Isso é coisa de desocupado, de poeta. É somente a primitiva constatação de que houve um passado, mal ou bem, dentro de mim. Algo banal, mas também de alguma profundidade, sentimento incapaz de se ausentar antes mesmo de qualquer até breve. A lembrança da aurora mirim retoma o seu roteiro originário sempre que se olfata o cheiro morno da chuva. Ou aquele aroma inconfundível que chega dos velhos sobrados de esquina, onde seres antigos observavam da varanda o tempo passar. Suas sombras viajantes vão me acompanhar até quando a travessia puder se sustentar, feito veleiro singrando o mar sem um cais à vista. Na infância tive o que de valioso cabia no meu alvará de salvo-conduto: carrinho de lomba fabricado no quintal, bicicleta monareta e joelheira de goleiro. Havia também os banhos na taipa de um tímido açude que ainda mora na periferia rural da minha cidade, e que não secará "enquanto meus olhos puderem chorar".

Um campinho de futebol para a pueril imitação dos grandes clássicos, tomado de assalto na surdina da noite pelo banco estatal, que ali se instalou à nossa revelia. No lugar do cinema de domingo, a loja de eletrodomésticos, e se não fosse a loja, seria mais uma igreja fabricante de dízimos. Se alguém quiser saber, talvez embalado pela flâmula da curiosidade, reconheço foi tudo muito permissivo nos meus dias de guri, afora um amor filial que transcendeu à lógica do razoável. Mas outras infâncias foram filmadas por aí, em cenários envoltos pelo mofino da insensatez. Ao invés do jogo de bola, o carro de mão da pobre família, atopetado de laranja, empurrado por pequeninas mãos rumo ao comércio das multidões. Substituindo o cheiro da chuva, o gosto acrimônico de sangue jorrando do nariz menino, resultado de um tapa desferido pelo padrasto bêbado. A vida só se torna justa, só tem sentido, para quem sofre menos. A infância, embora fato consumado, foi bem diferente para o filho do doutor advogado e o engraxate enteado do presidiário. Desigual é a descida do rio quando se vai no caiaque comprado em Floripa ou na câmara de caminhão toda remendada, presente do borracheiro. Apenas aquele que bebeu, lá atrás, da água barrenta do desprezo social conhece na palma da memória o gosto amargo que veio à boca.

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